A astronomia indígena é considerada uma das ciências mais antigas e não é sem motivo. O conhecimento astronômico ajudou tanto os indígenas brasileiros quanto povos originários de outras partes do mundo a se orientarem, criando calendários a partir dos movimentos do Sol, da Lua e das constelações. Nesta matéria, você descobre tudo sobre a relação entre os diversos povos indígenas e a astronomia.
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A relação entre as diferentes culturas e o conhecimento astronômico é tão profunda que existe uma área criada especialmente para estudá-la. Trata-se da etonoastronomia, ou astronomia cultural, um termo cunhado na década de 1990 que descreve o estudo das constelações e de como as diferentes culturas usam o céu noturno.
Quer um exemplo? Voltemos brevemente para 1687, ano em que o físico inglês Isaac Newton demonstrou como nosso satélite natural e seus efeitos gravitacionais afetam as marés em nosso planeta, levando às marés altas quando ocorre a Lua cheia e nova. Estas fases lunares acontecem quando a Lua, a Terra e o Sol estão alinhados, e a combinação da gravidade dos astros leva às mudanças nas marés.
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E o que isso tem a ver com a astronomia indígena? É que os Tupinambás, povos originários que habitavam grande parte do litoral brasileiro, também conheciam o fenômeno, só que de forma empírica. E, aliás, os indígenas do nosso país identificaram dezenas de constelações, como a do Homem Velho, da Anta do Norte, do Cervo e Ema.
Pois é, você deve ter percebido que os nomes destas constelações são bem diferentes daquelas que conhecemos. E isso é natural, afinal, as aparentes figuras que as estrelas formam no céu variam de acordo com o povo que as observa.
As constelações indígenas
Enquanto as estrelas revelam aos astrônomos os segredos de processos cósmicos, distribuição de elementos pelo universo e muito mais, o céu revelou a sociedades antigas as fases lunares, estações do ano e o ciclo de dia e noite. Com a ajuda das estrelas, os indígenas brasileiros notaram que atividades como peça, caça e coleta tinham ritmo sazonal e cíclico.
Por exemplo, considere a chamada constelação do Homem Velho, típica da cultura dos Tupi, povos originários presentes em nosso país desde antes da chegada dos portugueses. Na crença mitológica deles, as raízes da constelação estão relacionadas ao mito de um indígena que foi casado com uma mulher muito mais jovem, que passa a se interessar por seu irmão.
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No entanto, o cunhado era muito mais novo e, para o romance acontecer, ela matou o marido idoso e cortou sua perna na metade, na altura do joelho. Os deuses ficaram com pena dele e o transformaram em uma constelação, tornando-o uma figura eterna no céu.
Esta figura pode ser encontrada facilmente: o aglomerado estelar das Plêiades representa as penas do cocar e as estrelas das Híades, sua cabeça. Uma das suas pernas é composta pelo Cinturão de Órion (popularmente conhecido como “Três Marias”), enquanto a perna amputada é indicada por Betelgeuse, estrela gigante vermelha que tem brilho forte.
O “Homem Velho” passa a ser visto no céu por volta da segunda quinzena de dezembro. Sua aparição no céu é como uma indicação da chegada do inverno para populações do norte, período marcado por chuvas na região.
Astronomia dos indígenas brasileiros
Através do conhecimento astronômico, povos antigos conseguiram orientar seu cotidiano e construir calendários usando como referência os movimentos do Sol, da Lua e das constelações. E, afinal, como isso se aplica aos indígenas brasileiros? Bem, para eles, a Terra é como um reflexo do céu; portanto, o que acontece por aqui também ocorre com os astros.
Já as constelações, que ajudam a orientar direções, também contribuíram para estes povos identificarem as diferentes estações do ano: no verão, por exemplo, as constelações de Órion, Touro e Homem Velho podem ser vistas; já no outono, é a vez do Cruzeiro do Sul e Cervo do Pantanal. Depois, no inverno, entram em cena as constelações do Escorpião e da Ema, e na primavera, o Cisne e Colibri tornam-se visíveis.
E note que a astronomia indígena não se restringe a uma simples leitura das estrelas. Na verdade, o conhecimento astronômico ajuda a determinar o cotidiano destes povos, que contavam com as estrelas para orientarem suas atividades e rotina — a constelação do Colibri, por exemplo, sinaliza a chegada da época com mais alimentos e maior facilidade para o plantio e a colheita.
Além disso, as constelações indígenas representam também uma relação profunda com acontecimentos na Terra, animais e meio-ambiente. Novamente, vamos usar a constelação do Colibri como exemplo: ela tem o nome e o formato do beija-flor, ave considerada divina para os indígenas tupi-guarani.
Na constelação, há uma área que lembra a figura de um homem sentado — ela representa Nhanderu, considerado o deus criador na mitologia dos tupi-guarani. Enquanto isso, o colibri parece levar néctar das flores da primavera à boca de Nhanderu.
Germano Afonso e astronomia indígena
É impossível falar da astronomia indígena brasileira sem mencionar o prof Dr. Germano Bruno Afonso, um dos maiores divulgadores desta ciência ancestral no Brasil. Nascido em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, ele tem raízes indígenas de origem guarani e aprendeu com seus pais a observar as estrelas como os indígenas.
As observações das constelações indígenas somadas aos mitos dos povos originários foram alguns dos ingredientes para a “receita” que deu origem ao interesse de Germano em ciência e, principalmente, na astronomia. Em 1973, ele se graduou em Física pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), instituição em que concluiu o mestrado em Ciências Geodésicas em 1977.
Já na década de 1980, Afonso concluiu o doutorado em Astronomia de Posição e Mecânica Celeste pela Université Pierre et Marie Curie, na França, e em 1993, finalizou o pós-doutorado no Observatoire de la Cote d’Azur. Durante a carreira acadêmica, ele estudou astronomia indígena brasileira, a arqueoastronomia, a etnoastronomia, entre outras áreas.
Com apoio do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), Germano viveu quatro anos por lá. Durante a estadia, ele teve contato com integrantes de diversas etnias indígenas, com destaque para os pajés, que são aqueles que guardam o conhecimento mais completo da história dos povos. Como falava tupi-guarani, ele conseguia se comunicar, criar e manter relações com as comunidades ali.
Além da publicação do artigo Mitos e Estações no Céu Tupi-Guarani na revista Scientific American Brasil, em 2006, Germano teve papel fundamental para a construção de observatórios solares indígenas em aldeias, ajudando também no resgate do conhecimento astronômico das culturas contemporâneas.
“Para o indígena do Brasil, a Terra nada mais é do que o reflexo do céu. Então, toda a explicação está lá em cima: a origem do Universo, a criação do ser humano e a relação com o meio ambiente… É muito bonito e eu fui aprendendo isso já desde pequeno, nessa visão não ocidental”, declarou o professor em uma entrevista em 2011.
Germano morreu em 2021, aos 71 anos, devido à covid-19.
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